A cabra da independência

Estava em Dugal, um vilarejo de Guiné Bissal. Era a festa de 50 anos de independência do país, mas não havia comemorações porque não havia dinheiro, nem trabalho ou comida e nem sequer a ideia de que algum dia isso iria mudar. Levantavam para ficar na frente da casa tomando chá extremamente doce e saudar os que passavam pela estrada. Quando a noite chegava dormiam sabendo que no próximo dia tudo seria igual ao anterior. Para iludir-me pensando que por alguns dias vivi como eles viviam sentei-me à frente da casa e deixei que minha mente macaco me levasse para lugar algum. De repente, uma cabra rompeu o fio da monotonia de Dugal. Era puxada com força e empacava como burro, dando a entender que, como eu, não compreendia o porquê de toda aquela agitação. Mais assustado do que o animal estava o jovem que o havia roubado. Dele o medo saltava pelos olhos. Era trazido por um autoproclamado comitê de segurança que espontaneamente se havia formado no instante em que se percebeu que a cabra havia sido furtada. Pareciam caçadores que celebravam a captura da presa. Contaram-me com entusiasmo que houve perseguição, corrida, tentativa de fuga e resistência à prisão como em um filme de ação de Hollywood, mas que o acusado havia se entregado diante de um blefe de filme de comédia. Um dos membros da comissão de segurança simulou ter uma arma escondida no bolso, mas era uma espiga de milho que estava sendo comida no momento do anúncio do furto da cabra.Em meio a tantos gritos e manifestações exaltadas proferidas em balatanta, etnia predominante em Dugal, temi presenciar algum tipo de condenação feita pela massa de gente que se reunia em torno daquele rapazinho. Receberia chicotadas? Teria a mão decepada? Seria queimado vivo em fogueira de pneus? Eu não sabia se poderia intervir, mas ainda assim tentei. Às vezes, perguntas tolas são como música desligada abruptamente em um baile, inevitavelmente, forçam uma parada coletiva. E, talvez, inconscientemente, foi isso que pretendi ao perguntar por que não chamavam a polícia. Não, o grupo não parou e riu de mim como em uma cena de desenhos animados. Apenas Alsau, meu anfitrião, que também fazia parte da comissão e teve seu braço mordido pelo ladrão respondeu pacientemente que a polícia não se deslocaria por um caso tão simples. A patrulha que diariamente ficava a uns duzentos metros daquele local pertencia ao departamento rodoviário e, portanto, não podia interferir. Tinha como única função parar os carros velhos naquela estrada de chão esburacada e verificar se os impostos haviam sido pagos e pegar propinas para alimentar a família. Os sábios e anciãos do vilarejo foram chamados. Os que portavam o gorro vermelho podiam opinar e sugerir, os demais deveriam apenas ouvir. Parecia uma cena bíblica do tempo dos juízes. Foi formado o comitê de justiça. Vítima e acusado foram postos frente a frente. O pai do suposto ladrão estava lá para acatar as decisões do comitê e garantir que o filho cumpriria a pena. Já havia escurecido. Depois de horas de discussão onde todos discutiam com todos e com ninguém a sentença foi proclamada. A cabra, obviamente, voltou para o seu dono que até o fim do ano deverá receber da família do ladrão outra cabra para compensar o stress vivido em plena festa da independência. Um porco servirá como honorário para a comissão de segurança festejar o êxito de sua missão. E eu testemunho e vivo essa história para partilhar com vocês. Do jeito balanta a justiça foi feita. Não sei se a cabra está feliz mas, seguramente, não está independente, pois, como diz meu amigo Serginho, em terra que sofre gente, bicho sofre muito mais. E onde há sofrimento não há independência.

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